O CRISTIANISMO, AS RELIGIÕES PAGÃS E A BALEIA COMO RESNACIMENTO EM MOBY DICK, DE HERMAN MELVILLE.


          Falar em baleia na literatura, é pensar imediatamente em Moby Dick. Uma boa parte da sua grandeza literária, vem da obsessão que o capitão do Pequod tem em caçar a baleia branca. Outros elementos, como as representações religiosas e simbólicas contribuem para que o romance seja uma das leituras indicadas da literatura norte americana do século XIX.
            A religião é um tema sempre lembrado e recorrente em todo o percurso das 492 páginas do livro e é representado por cinco personagens: Ishmael, Queequeg, Tashtego, Daggoo e Fedallah. Cada um representando uma crença ou uma mescla das religiões.
            A exemplo, temos Queequeg, que por suas características era proveniente da Polinésia, mas adorava a um deus africano, mas ao mesmo tempo se observava uma prática religiosa mulçumana. E Fedallah, que apesar de ser considerado um persa por suas características físicas e por suas roupas, mas que leva consigo um nome mulçumano muito comum. Seria um equívoco de Herman Melville, ou a intenção do autor seria a de misturar as religiões do mundo tendo, pelo menos, uma representação dentro do Pequod?
Temos também, Daggoo e Tashtego, que apenas são apresentados como um africano e um nativo americano, da mais remota parte ocidental da ilha de Martha’s Vineyard, respectivamente. Neste ensaio iremos focar nas representações da religião cristã e a dessa religião mesclada que Queequeg apresenta.
 A representação do cristão protestante é realizada por todos os outros tripulantes do navio, mas mais precisamente por Ishmael, que é um marinheiro que trocou a vida de magistrado para conhecer os vários lugares do mundo, preferindo o lugar de subordinado de um navio, ao invés de entrar em um navio como um passageiro

Novamente, sempre vou ao para o mar como marinheiro porque fazem questão de pagar pelo meu incômodo, enquanto que, pelo que sei, jamais pagam aos passageiros um único centavo. Pelo contrário, são os passageiros que devem pagar. E há toda a diferença do mundo entre pagar e ser pago. O ato de pagar talvez seja o mais desconfortável castigo que nos legaram os dois ladrões do jardim paradisíaco. Porém, SER PAGO – o que se compara a isso? A refinada atividade pela qual um homem recebe dinheiro é realmente maravilhosa, considerando que, com toda sinceridade, acreditamos que o dinheiro seja a fonte de todos os males terrenos e que por isso, jamais um homem endinheirado poderá entrar no céu. Ah! Mas com que júbilo nos entregamos à perdição.                                                            (Posição 594)

            Deste modo, consideramos que Ishmael é o representante do catolicismo dentro do navio. Outras partes do livro dão confirmação à essa afirmação, como na posição 1418, na qual Ishmael afirma ser “um bom cristão, nascido e criado dentro do seio da infalível Igreja Presbiteriana”. Percebe-se também, que o narrador-testemunha é um grande conhecedor das escrituras sagradas da religião cristã, pois descreve com grandes detalhes as histórias bíblicas como as de São Simão Estelita, Jonas, e São Jorge. Sobre tudo o que foi dito sobre Ishmael, pode-se esperar que ele fosse uma pessoa com grande preconceito à outras religiões, mas ao contrário de um personagem estereotipado na religião, ele apresenta-se como um respeitador às religiões, desde que a pessoa praticante não mate ou insulte aqueles que não acreditam em sua crença.
            Ishmael tem um grande receio de dividir a cama com ele pela descrição feita pelo estalajadeiro, de que Queequeg era um canibal, mas chega à conclusão que era melhor dormir com um canibal sóbrio, do que com um cristão bêbado. Ao ir ao culto, em uma pequena igreja de New Bredford, ele fica surpreso ao descobrir que Queequeg está ali também, apesar da cena da noite anterior, na qual, ele vê o canibal adorar uma pequena imagem de madeira e de cor preta, no formato de um bebê recém-nascido.

Sacudindo o granizo do chapéu e da jaqueta congelados, sentei perto da porta e ao virar de lado surpreendi-me ao ver Queequeg perto de mim. Confundido pela solenidade da cena, havia um assombro ar de curiosidade incrédula em sua fisionomia.                                                                                              (Posição 1118)

            Então, ao voltar à estalagem, ele começa a conversar com o selvagem e descobre que ele é proveniente de uma ilha chamada Rokovoko, era filho de um grande rei dessa ilha, a qual uma vez, aportou um navio denominado Sag Harbor e vendo os tripulantes, Queequeg teve vontade de sair de Rokovoko e conhecer os costumes cristãos, que para ele poderia ajudar seu povo ser mais feliz do que eles já eram, mas o pedido de seu pai ao capitão do navio foi negado, pois sua tripulação estava completa. Mesmo assim, o selvagem não desistiu e embarcou como um imigrante.
Após conhecer as pessoas cristãs, Queequeg percebeu que era um povo mais infeliz que sua tribo e por isso tinha voltado a idolatrar a sua pequena imagem de madeira, mas ainda frequentava a igreja para poder fazer parte das tripulações baleeiras. Como já havia muito que tinha saído de sua ilha, seu pai possivelmente já tinha morrido, e ao questionado sobre seu retorno e assumir seu trono, o selvagem responde que “ainda não, acrescentando que temia que a cristandade, ou melhor, os cristãos, o tivessem tornado inadequado para ascender ao puro e impoluto trono de trinta reais pagãos antes dele” (posição 1481).
            Apesar de ter sido já mencionado, Ishmael é um bom cristão que acredita que todas as religiões devem ser respeitadas, ele relembra isso novamente, mesmo não concordando com o ritual da crença de Queequeg:

[...] nós, bons cristãos presbiterianos, deveríamos ser caridosos com essas coisas e não nos imaginar tão vastamente superiores aos outros mortais, pagãos ou não, por causa de seus conceitos meio loucos sobre esses assuntos. [...]                                                          (Posição 1920)
           
            Após pensar que o tempo que ele deu a Queequeg suficiente para cumprir o seu Ramadã, ele se depara com o selvagem ainda na mesma posição que ele estava pela manhã, mas verificou que ele não tinha saído daquela posição o dia inteiro, ao que se descreveu depois, ele passou a noite inteira também. Então, Ishmael, na sua boa condição de amigo do canibal sente que tem a obrigação de chamar e conversar com o selvagem sobre o ritual do Ramadã.
Como já mencionei anteriormente, não faço qualquer objeção à religião de uma pessoa, seja qual for, desde que essa pessoa não mate ou insulte os outros porque não acreditam em sua crença. Mas quando a religião de um homem torna-se realmente louca, quando é um tormento e por fim faz desta nossa terra um local desconfortável para se viver, acho que é hora de chamar esse indivíduo de lado e discutir o assunto com ele.
E foi exatamente isso que eu fiz com Queequeg. [...]                            (Posição 1986)

            Mesmo que ele afirme a todo momento que não tem problema com outras religiões, ele fica incomodado com a situação de jejum e meditação de 24 horas de Queequeg.  Ao deixa-lo em seus rituais e ir procurar um navio para que embarquem, torna-se incrédulo que o pequeno Yojo já tinha escolhido o navio. Será mesmo que ele não teria ao menos um preconceito escondido por trás do seu discurso?
            No momento em que Ismael conhece o capitão Bildad, se surpreende que aquele senhor era um quacre possa ter estado nos quatro oceanos e tenha uma fama de “um velho sovina incorrigível, e em seus dias de marinheiro, um chefe violento e amargo” (posição 1785).

Não sei como o piedoso Bildad conseguia reconciliar essas coisas com suas lembranças, nas noites contemplativas de sua vida, mas isso não parecia perturbá-lo muito e provavelmente já chegara à sábia e inteligente conclusão de que a religião de um homem é uma coisa, este mundo prático é outra, completamente diferente.                                     (Posição 1785)

Pensando nos outros acontecimentos do livro como, por exemplo, quando Ishmael leva seu amigo para conhecer os sócios majoritários do Pequod, os mesmos se assustam com a aparência do selvagem ao ponto de não quererem dentro do navio. Parece incompreensível, já que o nome do navio veio de uma tribo não católica e que foi que no século XIX já era extinta, pudesse ainda ter algum tipo de preconceito com a origem e a religião de Queequeg.
                Após retornar com Queequeg, os proprietários do navio se assustam com suas tatuagens e ficam com receio de integrá-lo na tripulação, mas apenas depois de Ismael discursar que o selvagem pertencia a Igreja Congregacional, a qual “nós e todos os que nasceram de uma mulher, a ela pertencemos de corpo e alma” (posição 2018)
            Com eles já integrados à tripulação, podemos passar para os acontecimentos que se passam dentro do Pequod focam na crença cristã. De início notamos que um culto é realizado no dia e antes do navio zarpar para a sua viagem de três ano nos mais remotos oceanos da Terra.
Posteriormente, ao matar uma baleia, Stubb, segundo imediato do Pequod, pede um pedaço da cauda desse leviatã e manda que seja preparado. Junto a ele, inúmeros tubarões, aproveitando desse jantar inesperado, se alimentam da baleia. O marinheiro se irrita com o barulho e pede para que o velho cozinheiro Fleece vá até a amurada “catequiza-los” (posição 5588).

Pegando a lanterna com tristeza, o velho Fleece foi mancando até a amurada e, dirigindo a luz para o mar para enxergar claramente sua congregação, inclinou-se sobre a amurada e com a outra mão agitou solenemente suas tenazes e começou a falar com os tubarões em voz baixa. Stubb aproximou-se devagar e para ouvir o que ele dizia.
“Companheiros, criaturas de Deus: recebi ordens para vir aqui dizer que vós tendes que parar com esse maldito barulho. Entenderes bem? Acabai com esse maldito estalar de lábios! O sinhô Stubb diz que vó podeis encher a maldita pança até rebentarem, mas por Deus, tendes que acabar com essa maldita algazarra! ”
“Cozinheiro”, interrompeu Stubb nesse momento, acompanhando a palavra com um súbito tapa no ombro. “Cozinheiro! Maldito sejas! Não podes praguejar durante o sermão. Isso não é modo de converter os pecadores!” (Posição 5588)

Uma interpretação possível é de que a tentativa de catequizar os tubarões pode representar a necessidade cristã de converter tudo que é diferente de sua doutrina, assim como, a tripulação busca catequizar um selvagem, um índio ou um africano que ainda não foram batizados na igreja católica ou presbiteriana.
Algumas cenas adiante, nos deparamos com um símbolo da morte e da religião que pode ser observada em todas as crenças e culturas em torno do globo terrestre: o funeral. Queequeg pegara uma terrível febre que o deixou de cama até quase a uma morte certeira. Sendo assim, ele pediu que lhe construísse um esquife para que pudesse descansar no momento em que ele falecesse, pois tinha visto um desses em Nantucket e que lembrava as madeiras de sua ilha natal. Além disso, o costume era bastante parecido com a de sua tribo. Ao morrer, um guerreio era embalsamado, estendido em sua canoa e deixado flutuar “ao sabor das correntes que levariam o morto aos arquipélagos siderais” (posição 8691).
Ainda que a tradição de sua tribo era, Queequeg prefere que seja feito para ele, um esquife, um que ele tinha visto em terra e nos serviços fúnebres do fiel cristão. Quando finalizado, o selvagem começa a melhorar e não se vê mais a necessidade do esquife para ser a última morada de alguém.
Depois do episódio com o esquife, o Pequod teve um pequeno revés com seu salva-vidas, que por estar a algum tempo sob o sol e sobre o mar perdeu sua utilidade. Ao tempo que não foi possível encontrar um barril que não fosse resistente e ao mesmo tempo leve para servir de salva-vidas, Queequeg sinalizou que poderiam utilizar o seu esquife. Como símbolo para uma morte ou mesmo como um mal presságio, a construção foi usada para substituir o qual se tinha perdido.         
Nota-se que a madeira utilizada para a fabricação do mesmo era de uma coloração escura, lembrando o ébano que se acreditava ter o poder de proteger do medo, deste modo, era muito utilizado para a fabricação de berços. Outros contam que ébano era a cor do trono de Plutão, rei dos infernos o que o faz ser ligado às trevas e ao inferno. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 355). Por esse motivo, foi criticado por muitos substituir algo que significaria poupar vidas, por algo que traria mau agouro ao navio e a sua viagem.
Podemos notar que por mais mau presságio que fosse, o caixão é única peça, assim como Ishmael é a única a pessoa que sobreviveu ao náufrago do navio. 
Outra passagem interessante sobre o profano e o cristianismo no livro, é quando o capitão Ahab ordena que seja forjado uma lança especial para ser utilizado por ele em sua caçada pela Moby Dick. Depois de finalizado, o arpão foi batizado, com o sangue dos três personagens que mais caracterizam o profano no livro: Queequeg, Tashtego e Daggoo. Os três, junto com a herege frase de batismo do capitão Ahab, torna o capítulo um grande choque para a sociedade que ainda dava maior parte do poder à igreja.
Depois de tudo que foi discutido, podemos pensar que Ishmael, mesmo afirmando diversas vezes que ele não teria nenhum preconceito com a religião e as práticas pagãs de seu grande amigo Queequeg, aparece como crítico, mas quando se tem uma cena com que Ahab batiza o arpão com o sangue dos três arpoadores e ainda clama a frase “Egon non baptizo te in nomine patris, sed in nomine diaboli!”[1] não traz nenhum sentimento de contrariedade em Ismael.
Outros elementos trazem o cristianismo para dentro do livro, a baleia é um grande símbolo, mesmo que se apresenta ao navio apenas nos últimos três capítulos. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009) a Baleia é o símbolo da ressureição, do novo nascimento. Ora, temos um capítulo no livro que conta sobre o renascimento.
No capítulo 78 denominado “A cisterna e os baldes”, temos Tashtego como a pessoa que foi designada para o grande trabalho de recolher o perfumado espermacete, e não sabe como aconteceu, mas se sabe que o índio caiu dentro da cabeça do cachalote, onde fica esse espermacete e com a velocidade com que tudo se aconteceu, poderia ter sido o fim da vida do pobre Tashtego.

[...] Mas como se realizara esse nobre salvamento? Pois bem, mergulhando atrás da cabeça que afundava lentamente, Queequeg usara sua afiada espada para abrir um grande orifício perto do fundo da massa. Depois, largando a espada, enfiara seu braço longo no interior da cabeça, tateando por toda parte até agarrar a cabeça do pobre Tashtego para puxá-lo para fora. Ele depois nos contou que primeiro conseguira apanhar uma perna, mas sabendo que aquele não era o modo correto de retirá-lo dali, pois poderiam se apresentar grandes inconvenientes, ele largara a perna e com hábil puxão virara o índio do outro lado para que pudesse sair pelo lado certo – a cabeça primeiro. Quanto à grande cabeça do cachalote, aconteceu com ela o que se esperava.
E assim, pela coragem e grande habilidade obstétrica de Queequeg a liberação, ou melhor, o parto de Tashtego foi realizado com sucesso, apesar dos desesperadores impedimentos, o que se constituiu em lição inesquecível. A arte de realizar um parto deveria ser ensinada juntamente com a esgrima, o boxe, a equitação e o remo. [...] (Posição 6410-6436)

            A baleia poderia ter sido o fim para Tashtego, mas como descrita por ser também a forma e o lugar do ventre feminino. Além de, remeter à história de Jonas, podemos verificar que na cultura árabe, a vigésima nona letra nun significa peixe, mais especificamente à baleia. Outra descrição dessa letra é interessante:

O próprio formato da letra, em árabe (a saber, a parte inferior de uma circunferência, um arco, encimado por um ponto que lhe indica o centro) simboliza a arca de Noé flutuando sobre as águas. (CHAVELIER; GHEERBRANT, 2009, p. 116)

Vimos como a religião é constante e presente durante todo o livro, trazemos uma relação da religião pagã e da religião cristã, presentes e representados pelos personagens que nos são apresentados por primeiro: Ishmael e Queequeg. Finalizamos que os praticantes da religião cristã, por mais que se declarem respeitar as religiões que pelo globo terrestre existam, há ainda muito preconceito e aversão à essas religiões. Nota-se bem essa aversão, quando o autor mistura rituais e características dos personagens que foram colocados no enredo para a construção de cada religião.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 


CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain et al. Dicionário de símbolos. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. 996 p.

MELVILLE, H. Moby Dick, or The Wale, Edição Bilíngue. E-book kindle. São Paulo: Editora Landmark, 2017.




[1] “Não te batizo em nome do Pai, mas em nome do diabo!” (posição 8854)

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